Numa perspectiva inteiramente diferente, a das grandes tradições esotéricas, o real é percebido como um eterno instante (antes não existe mais, depois não existe ainda) que vibra em um infinito jogo de correspondências. Sou floresta, eco de todas as florestas – seixo, deserto, chama, fonte, lago, etc. Cada emoção, cada pensamento, mesmo o mais abstrato, é transposição em um plano sutil, das substâncias naturais. Somos uma trama de temas naturais combinando-se infinitivamente segundo variações e modulações: o tema da raiz, o tema da água límpida, o tema da gruta, etc.
Por que Quatro Elementos?
A interpretação dos presságios naturais baseia-se, antes de mais nada, numa simbólica dos Quatro Elementos. Essa classificação quartenária procede de uma observação corriqueira: o meio sensível onde evoluímos e de onde proviemos manifesta-se sob uma forma quádrupla e oscila incessantemente entre os estados sólido, líquido, gasoso e a energia calor-luz. Sublinhemos que não se trata aqui de uma leitura científica do mundo, ligada às propriedades física e químicas dos corpos, mas de uma abordagem imediata, de um modo de consciência e compreensão que depende da percepção sensorial. Quaisquer que sejam as avaliações de uma aparelhagem ultra-aperfeiçoada, nosso primeiro conhecimento continua sendo o da visão e o das mãos, que anunciam o caráter plástico ou resistente, fluido ou angular do contexto ambiente. É com tipos de inter-relações emergentes desse conhecimento que nossa consciência se identifica, sobre eles construindo seus principais referenciais. Donde os Quatro Elementos, aos quais os filósofos acrescentam o Éter, quinto Elemento representando a matéria infinitamente tênue do espaço que envolve e sutilmente impregna os outros quatro. Como é inacessível aos sentidos, apresenta-se mais como uma espécie de atributo ou de suporte metafísico, de veículo abstrato, do que como um verdadeiro Elemento tangível e manifesto. O simbolismo do Éter, aliás, reduz-se quase automaticamente a um prolongamento do simbolismo do Ar (sopro da vida).
Anatomia Sagrada do número 4
Uma outra ordem de considerações trabalha a favor desse quartenário: é a numerologia, cujo simbolismo atribui a essa classificação um fundamento esotérico, unindo-a a uma corrente de intuições tradicionais expressas desde a mais remota antiguidade. Lembremos alguns dados gerais:
Número 1 – a Unidade – representa o estado do real interior a qualquer manifestação. Como o Zero e o Infinito, é uma das três grandes entidades metafísicas impossíveis de representar, visto que toda representação implica, no mínimo, dois termos: o sujeito que concebe e o objeto concebido. Por outro lado, a unidade só se estabelece com relação à multiplicidade, fato que já implica uma dualidade (do mesmo modo que infinito e finito, ou tudo e nada). Em termos religiosos a Unidade chama-se Deus, também refratário a qualquer definição e representação. Eis por que os místicos, sobretudo orientais, falam mais em não-dualidade do que em unidade. De fato, nesse nível, o símbolo matemático da Unidade reflete a incapacidade de nossas estruturas psíquicas para a apreensão da não-dualidade. A tradição budista sublinha essa incapacidade fundamental adotando a noção de vacuidade, mais próxima do zero, e a tradição Vedanta volta-se sobretudo para os conceitos de plenitude e totalidade, comparáveis ao infinito matemático.
Número 2 – a Dualidade – assinala a origem e o fundamento de toda a relação: ser-não-ser, manifestação-não-manifestação, sujeito-objeto, cognoscente-conhecido. A consciência não pode funcionar sem essa bipolarização eu-não-eu, ego-mundo, observador-observado, espectador-espetáculo. Assim a Dualidade traduz a ambivalência universal das grandes simetrias iniciais os pares de opostos simultaneamente contrários e complementares: relativo-absoluto, positivo-negativo, ativa-passivo, sim-não, exterior-interior, preto-branco, agradável-desagradável, nascimento-morte, etc. O pensamento não pode conceber nada que não tenha seu contrário. Em termos religiosos, a dualidade intervém na primeira centelha criadora, no momento em que o Divino rompe sua incomensurável solidão produzindo algo além de sua própria transcendência. Proferindo “Que se faça luz!”, Deus não engendra somente a luz, cria também as trevas, ou melhor, o inseparável luz-trevas. O estado Divino anterior ao “Fiat Luz!” precede, ao mesmo tempo, as trevas e a luz, está além e de modo indizível. Para simbolizar os pares de opostos, a Dualidade encontrou a expressão mais adequada – perfeitamente simples e prodigiosamente completa – no Yin e Yang do pensamento chinês tradicional. Isto posto, no estádio da estrita Dualidade, o real está como bloqueado, petrificado, pois se reduz a duas forças iguais e opostas que se anulam ou se paralisam mutuamente, onde o universo aparece mais ou menos como um gigantesco “garrote” imobilizado num eterno equilíbrio, num estado puramente estático. No Ocidente, a escola junguiana traduziu a mesma noção pelos conceitos de Animus e Anima. Para que os movimentos se produza, um dinamismo desencadeie, é preciso um terceiro fator, uma função de desequilíbrio, um “desmancha prazeres” que imiscua no imóvel colóquio dos dois pólos opostos. Ente o olho que vê e as coisas vista, a visão é o terceiro termo indispensável e indissociável dos demais. Entre o cognoscente e o cognoscível, há o conhecimento.
O universo só se põe realmente em movimento com o Número 3 – entre o positivo e o negativo é necessário um fator neutro que possibilite a interação, mutação, a progressão e a regressão de uma relação ao outro. Toda criação implica a produção do Número Três, seja por divisão de uma célula-mãe em duas novas entidades, seja pela união do masculino e do feminino para engendrar um terceiro ser. Trata-se também do velho princípio da dialética-tese, antítese, síntese. Na linguagem religiosa fala-se em Trindade: o Pai-Criador, o Filho-Criatura. o Espírito-Santo – o liame, o mediador entre o Criador e a Criatura. A tradição hinduísta ilustrou magnificamente a natureza fundamentalmente trinitária de todo movimento pela tríplice figura mitológica de Brahma, Vishnuu e Shiva que encarnam, respectivamente, os poderes da Criação, Preservação e Destruição, isto é, as três fases inerentes a todo fenômeno: começo, desenvolvimento e fim, aparecimento, perpetuação e desaparecimento, ou ainda nascimento, maturação e morte. Este tríptico traduz menos etapas distintas e separáveis do que um processo global, indivisível, sendo toda maturação também nascimento e morte, etc. A todo instante e simultaneamente. Brahma gera o mundo que Vishnuu mantem e que Shiva abole, numa contínua passagem de não-existência à existência e da existência à não-existência.
O Número Quatro constitui o passo decisivo: marca uma reviravolta na realização concreta, a verdadeira emergência da Ação no Verbo. Quatro é o primeiro número obtido pela multiplicação (2 x 2). Do movimento dos pares de opostos procedem os grandes eixos e as direções espaço-temporais fundamentais: alto-baixo, esquerda-direita, frente-trás, e evidentemente, os quatro pontos cardeais. Na tradição chinesa, o Quartenário aparece desta forma: há, inicialmente, essa Realidade, completamente indefinível chamada Tao – unidade, totalidade, não-dualidade; nesse nível todas as palavras e conceitos são caducos, pois “o Tao que se pode denominar não é o Tao”. Surge em seguida a Dualidade primordial: Yin e Yang. A terceira operação movimenta esse par pela elaboração de trigramas que indicam, em cada figura, uma preponderância do Yin sobre o Yang ou vice-versa. Obtém-se, assim, oito trigramas que (2³). Na quarta operação cada trigrama se combina com cada um dos oito para criar os 64 hexagramas (4³), que representam os cursos do potencial de realização, os principais procedimentos e direções do universo manifesto. Essa quarta fase é determinante porque traduz a riqueza das variáveis e a diversidade dos possíveis no estádio da experiência vivida. Com relação ao último ternário – começo, ápice e declínio – o quarto termo constitui simultaneamente um além, uma última conclusão e o arranque, o impulso inicial para o ciclo seguinte. Todos os músicos sabem, por exemplo, que a quarta nota de uma gama é também sempre a primeira nota da gama seguinte (a passagem do 3 ao 4 sendo marcada por um intervalo de meio-tom, ao passo que entre as outras notas ele é de um tom).
A Quadratura do círculo
No plano do simbolismo geométrico o Número 4 é representado pelo quadrado ou pelo cubo, que é sua projeção no espaço. Com relação ao triângulo, que é uma figura dinâmica, evolutiva – ascensão da base ao vértice, progressão, espiritualização, etc – o quadrado oferece a imagem de uma fixação, de uma estabilidade, de uma igualdade de níveis: 4 ângulos, 4 lados, 4 orientações opostas e complementares. Donde o caráter esotérico e sagrado das construções piramidais, que tem triângulos como faces e como base de um quadrado que se torna evolutivo, e assim ilustra a progressão do compacto ao sutil, da substância à essência. Uma outra comparação significativa concerne o círculo e ao quadrado, ou a esfera e o cubo. Em Le régne de la quantité et les signes des temps (Gallimard), René Guénon consagrou esse assunto com um texto notável:
“Com propriedade, a esfera é a forma primordial porque dentre todas é a menos “especificada”, pois que semelhante a si mesma em todas as direções, de um modo tal que, em qualquer movimento de rotação em torno de seu centro, todas as posições sucessivas podem rigorosamente ser superpostas entre si. Poder-se-ia dizer então que ela é a forma mais universal de todas que, de certo modo, contém todas as demais, dela emergentes por diferenciações dando-se segundo certas direções particulares; eis porque essa forma esférica é, em todas as tradições, a forma do “Ovo do Mundo”, isto é, daquilo que representa o conjunto “global”, no seu estado primeiro e embrionário, de todas as possibilidades que se desenvolverão durante um ciclo de manifestação. (…) Ao contrário, o cubo é a forma mais contida de todas, se é possível essa expressão, isto é, aquela que corresponde ao máximo de “especificação”. (…) Aliás, é evidente que um cubo que repousa sobre uma dessas faces é, de fato, o corpo cujo equilíbrio apresenta o máximo de estabilidade. (…) A imobilidade assim compreendida, a imobilidade ou a estabilidade representada pelo cubo referem-se ao pólo substancial da manifestação do mesmo modo que imutabilidade, na qual estão compreendidas todas as possibilidades do estado “global” representadas pela esfera, referem-se a seu pólo essencial; eis porque o cubo simboliza a ideia de “base”, ou de “fundamento”, que precisamente corresponde a tal pólo substancial.
Compreende-se melhor o valor quase mítico da quadratura do círculo que visa integrar dois símbolos de naturezas fundamentalmente opostas. Observemos que Jung aí vislumbrou a mais fiel representação de Animus (quadrado, princípio masculino) e de Anima (círculo, príncipio feminino).
A CRUZ DOS ELEMENTOS

No contexto sensorial em que nos situamos, o caráter material da manifestação fundamenta-se num quádruplo conjunto de propriedades:
- A solidez, a densidade, o peso, que oferecem um suporte, um ponto de apoio, uma resistência, um centro de gravidade, um limite, um território, um referencial dotado de aparente fixidez, estabilidade, sem o que nenhum movimento seria detectável e nenhuma medida concebível – é o Elemento Terra.
- A mobilidade, a leveza, a transparência, a abertura, a dispersão, a expansão, a vacuidade, a dimensão volátil e sutil sem o que não poderíamos nos mover, circular, estabelecer uma relação entre os pontos – é o Elemento Ar.
- A fluidez, o fator de mistura, de interpenetração, de união, de osmose, de fusão, de amálgama e dissolução – é o Elemento Água.
- Finalmente a energia, que ilumina e aquece, transformando o sólido em líquido e esse em gás – é o Elemento Fogo: criador e destruidor das substâncias, anima, projeta, revela, tornando visível e perceptível o jogo das formas, das estruturas e das cores.
Em termos de espaço, o Ar exprime uma tendência ascensional (altura), a Terra uma tendência para baixo (profundidade), a Água uma direção horizontal (extensão – o líquido se espalha ao passo que o sólido pesa), e o Fogo traduz a ação transformadora e criativa que garante a passagem de uma direção para outra.
Encontramos aqui o simbolismo da cruz cuja importância é evidenciada por todas as tradições esotéricas e espirituais do Ocidente e do Oriente. Com seus braços direcionados para o infinito, a cruz é, um símbolo ativo, dinâmico, totalmente aberto do quartenário, ao passo que o quadrado dele é uma representação estática, hermeticamente fechada. O eixo vertical representa o princípio ativo, dinâmico e o eixo horizontal o princípio passivo, estático. Assim é também a confluência entre o Masculino e o Feminino, percebidos não como duas entidades antagônicas, mas como duas forças complementares, o verso e o reverso de uma mesma realidade indivisível. Numa outra leitura, que consideraria o simbolismo dos movimentos e das inter-relações, a Terra (profundidade) e Água (extensão) representariam o pólo passivo – tendência a gravidade, à inercia, à imobilidade, assim como à interioridade, à obscuridade, aos potenciais não-manifestos,; o Ar (ascensão, liberdade de movimento) e o Fogo (transformação, criação, destruição) representariam o pólo ativo – liberação das massas, do impulso, mobilidade, modificação das substâncias e estruturas por irradiação, fusão ou evaporação, exterioridade, clareza, tornar manifesto, realizado, vontade atuante frente à vivência das atrações gravitacionais.
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Este texto foi retirado do livro Os Presságios de 1983 que faz parte da coleção Artes Divinatórias. Abrange diversos assuntos como os Oráculos Naturais, A Vida dos Quatro Elementos (parte deste abordamos neste post), Símbolos e Presságios dos Quatro Elementos; que em breve estarei postando aqui no blog. O legal desse livro é que ele faz diversas associações e usa a simbologia de contos e mitos antigos para se fazer entender, já que tudo é signo, tudo é presságio. As substâncias e as formas que nos cercam correspondem simbolicamente a tendências psicológicas e a comportamentos cotidianos, bem como valores morais e ideológicos. Recomendo a quem queira comprar, é uma boa escolha, vale a pena devorar esta bela coleção que nos remete a profundas reflexões.
Grata mais uma vez! Até a próxima 😉
NM
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2 comentários em “A Vida dos Quatro Elementos – Os Presságios (1983)”